Once upon a time...
Uma
velha cidade amurada era a anos assolada por uma praga misteriosa. A natureza
da praga era desconhecida, mas sabia-se que carregava sintomas de lepra, com
necrose e perda de membros, no entanto, as feridas ficam purulentas, cobertas
por um tecido mole e corrimentos de viscos.
Josias
era apenas mais uma vítima dessa maldição, com a perda da orelha esquerda e com
as erupções no rosto, não conseguia mais emprego, e fora a muito expulso de
casa. Os dias nas ruas eram indiferentes, por isso não os contava mais.
Naquela
manhã, Josias roubara um pouco de feno, enlouquecido pela fome, mas logo
percebera seu erro, por isso usou-o para forrar o chão. O sol havia sido
cruel durante a tarde, mas ficar deitado reduzia as dores da doença e o feno
oferecia um mínimo de conforto, apesar de tudo.
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By: Thesla |
Somente
quando a lua era alta pode observar seus arredores, e viu-se num beco de muros
de pedra, deserto. Somente a parede em que recostava exibia qualquer traço de
vida, uma cerca viva de videiras grossas e bastante verdes. Aquela visão
oferecia um pouco de paz a sua alma atormentada. Adormeceu.
Era
ainda madruga quando sentiu o corpo preso, apertado num abraço fio e ressecado.
Abriu os olhos e se viu amarrado, as videiras o cercavam e arrastavam para
dentro do muro, como uma boca faminta. Tentou gritar, mas a garganta ressecada
não permitiu, então arregalou os olhos, com a maior expressão de medo que pode
produzir.
Num
piscar de olhos, a rua havia sumido, e estava livre novamente, mas livre aonde?
Ficou de pé tateando a escuridão. Paredes de pedra e um chão liso sob os pés
descalços. De repente, um degrau. Foi então que tochas começaram a acender,
iluminando o caminho.
Josias
estava agora dentro de uma escadaria que descia sinuosamente. Não havia entrada,
por isso, seria obrigado a seguir os degraus até onde eles o levassem.
Desceu
o último degrau e se deparou com uma sala estranha. Parecia um salão circular,
como uma grande sala de jantar de castelo, mas não havia móveis. Tampouco havia
tochas, mas o local era muito bem iluminado com um brilho alaranjado que
parecia vir de baixo do chão de cristal. O teto era de cerâmica e carregava uma
pintura de dois bravos cavaleiros em um combate mortal.
Só
depois de muito tempo observou a figura estranha que o encarava com olhos
raivosos.
-Quem
é você e o que faz aqui? – perguntou a mulher com o rosto coberto por um véu.
-Sou
apenas um pedinte, estava dormindo na rua quando vim parar aqui. – Respondeu
Josias, ainda confuso com o que acontecera.
Ele
observava a moça, e logo percebeu pelas vestes que se tratava de uma bruxa. Ela
carrega um conjunto de frascos e poções amarradas na cintura, juntamente com um
saco que parecia ser de ervas, seus pés e cabelos pareciam sujos de terra, sua
roupa rasgada tinha folhas enroscadas no tecido e nos dedos, carregava anéis de
gemas presas por raízes trançadas.
-
E o que quer comigo? Vociferou a mulher.
-Me
desculpe, não quero nada, estou apenas perdido. - Disse o homem apavorado.
Embora ele não soubesse, a bruxa estava tão irritada porque estava presa há
séculos e pensava que ele pudesse ter vindo atormentá-la.
-Então
talvez possamos nos ajudar, não há saída deste inferno, a menos que você possa
ler essas palavras- disse ela apontando para o único objeto na sala, um livro a
seus pés.
Josias
havia sido bibliotecário real antes da praga, por isso, era muito bem letrado,
ao contrário da pobre mulher, que mal conhecia as letras. O homem pegou o livro
e logo começou a pronunciar aquelas balburdias de outro idioma. Prontamente um
corredor se abriu, com uma nova escada descendente. A bruxa respirou fundo e
imediatamente desapareceu.
Josias
estava novamente sozinho, então decidiu seguir o caminho que surgira diante
dele. Dessa vez, as paredes não eram tijolos de pedra, eram estalactites de uma
caverna, e as tochas estavam mais distantes dificultando enxergar o caminho.
Quando
chegou ao fundo encontrou novamente a mulher, mas dessa vez ela carregava uma
grande lanterna a óleo.
-
Para sair daqui, você terá que passar por aquela porta,- disse ela apontando
para a direita, onde havia uma velha porta de madeira apodrecida- mas se o
fizer, - ela ergue a lanterna- acordará esta criatura.- e a luz difusa revelou
um grande bloco de gelo, com um fóssil reptiliano preso bem no meio.
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by: Thesla |
Nem
a criatura nem o sorriso de canto da bruxa importavam para Josias, a doença já
o corroía, aquilo não poderia assustá-lo. Correu e atravessou desesperadamente
a porta, caindo de joelhos na mesma rua que adormecera.
Mesmo
com o esfolado, o homem correu desesperadamente pela rua, agora que o medo o
atingira. Josias gritava sobre um monstro, mas gritaria era comum para os
doentes, por isso ninguém dava atenção.
Em
pânico, Josias abordou dois guardas, tentando informar sobre o que vira, mas
eles se entreolharam desconfiados, prontos para espantar mais um “maluco”. No
entanto, antes de estenderem as alabardas, olharam para os céus.
Era
início da manhã, o sol havia aparecido a pouco, mas começava a escurecer.
Grandes nuvens formavam uma espiral de olho negro sobre a cidade, bem no meio
da temporada de estiagem. Logo se ouviu um grande estrondo e, na praça central,
os lajedos de pedra talhada começaram a erguer-se, como se uma erupção fosse
romper bem no centro da cidade.
Ouvindo
o barulho, os guardas abandonaram o doente e correram para averiguar a
situação.
Lama
e barro emergiam rapidamente num monte fétido por entre os lajedos cinzentos, e
de repente, uma criatura cadavérica serpenteou para fora da podridão,
ressonando num barulho gutural extremamente ameaçador. Como se por um feitiço,
todos os doentes pararam, hipnotizados pela sinistra melodia.
Mathias,
o guarda veterano, olhou no fundo os olhos de seu parceiro, e pousando a mão no
ombro do companheiro, deu o sinal para que atacassem a criatura, mas enquanto
apontavam suas alabardas, sentiram o toque viscoso de dezenas de doentes,
correndo por cima deles, tentando alcançar de qualquer maneira aquele réptil
fossilizado.
Os
guardas acabaram mortos, atropelados pela massa de carne pútrida que se
agarrava nos ossos expostos da criatura, se contorcendo e deformando, aos
poucos preenchendo o que faltava naquele animal.
A
criatura nem era tão grande assim, cinco metros de comprimento, mas parecia
nunca se completar. Quando quase todos os contaminados das ruas foram
absorvidos, ela começou a violentamente invadir as casas, propagando gritos e
pânico.
Nesse
momento, emergia, da mesma pústula de lama e podridão que a criatura surgiu,
uma figura feminina, a bruxa que outrora estava presa com Josias, sorrindo e
cantarolando.
Quando
Josias passou por ela, prestes a abraçar o corpo do monstro, ela o interrompeu,
com um sonoro beijo na bochecha purulenta, em um agradecimento impiedoso.
Mais
guardas fecharam a passagem na rua principal, mas a essa altura, mais da metade
da cidade já havia se perdido. A criatura se ergueu às costas da moça, e rugiu
com seu hálito insalubre, enquanto a bruxa tirava de sua sacola penas ensanguentadas.
Cada
pena que ela lançava ao vento se transformava em um pequeno bando de corvos
famintos. Os corvos atacaram os guardas, quebrando sua devesa, e então a massa
de vísceras reptiliana atacou, assassinando a todos.
Mas
a violência não parou, a bruxa continuou a atirar penas, até que uma grande
nuvem de pássaros negros estivesse sobre a cidade, alimentando-se de todos que
ali estavam. Então, era hora de marchar sobre o castelo.
Invadindo
a muralha interna, sob um sinal de mão da mulher, a Serpente pútrida se ergueu
novamente, abrindo o próprio rosto ao meio, dividindo-se em duas criaturas.
O
palácio caiu rapidamente, com os corvos dilacerando a corte. Não havia
necessidade de discurso, não havia necessidade de antagonizar o rei, aquela
vingança era impessoal, direta, e a bruxa não perderia tempo com monólogos de
vitória. Ela então subiu a escada da torre mais alta, saindo diretamente para
um jardim de terraço.
Daquele
jardim verde, ela observou sua obra. Enquanto os pássaros imundos decoravam o
horizonte, a bruxa sorriu feliz, pois sua profecia de vingança havia se
cumprido. Ela então abandonou aquele maldito lugar e foi para casa... ... em
paz.